Abandonar o navio!

Essa é muito mais que uma história ou uma premonição. É um relato que, por mais que se disfarce de mirante – que enxerga as situações de longe – acontece de dentro para fora, se transforma. Surge em uma ferida, termina em amputação.

Foto: supershaggy
Abraçada pelas marés, uma porção de terra não muito antiga sobrevivia com a presença nociva de seus germes. De sua beleza, acometida severamente de mazelas, só restavam uns três ou quatro cacos da herança trazida por navios já perdidos no tempo e mais alguns bocados de lembranças. Era uma ilha não muito indispensável no mapa, de limites definidos ao sabor das águas e da astúcia humana. Suas avenidas tinham um quê de modernidade imposta e mal sustentada, em conformidade com o cenário de um desenvolvimento mal aplicado.


Certo dia, a pequena ilha amanheceu no mais agressivo silêncio. As ruas, antes habitadas por todo tipo de gente, agora davam passagem apenas a umas poucas folhas secas e alguns papéis desgarrados que voavam conforme a vontade do vento. Os poucos habitantes que ainda insistiam em lá morar abriram os olhos atônitos ao perceber que, como companhia, só tinham os prédios em ruínas, grandes crateras no asfalto carcomido e um ar carregado de abandono. O jornal das seis anunciava o êxodo em massa, porém havia algo de diferente. Não havia alvoroço, tumulto ou gritaria: as balsas se enchiam sem nenhuma lágrima cair; os ônibus lotavam sem ouvir-se uma voz sequer; e os aviões decolavam em grande calmaria. Parecia uma grande procissão fúnebre e triste, porém conformada.

A situação já se arrastava havia alguns meses.

Os pioneiros da viagem sem volta começaram a surgir e poderiam ser contados nos dedos. Mas com o tempo a cidade foi murchando, foi sendo engolida por si mesma, e cada vez mais gente esgotava os bilhetes de passagem conforme os dias iam se passando.

Nessa manhã, quando nem mais os pássaros tinham força de se expressar, já não havia esperança de soluções para aquela que tinha sido a cidade da infância de muita gente. Não havia mais lembranças, nem iniciativa de lutar por algo já perdido entre as duras estátuas onipresentes e os logradouros viciados em um só sobrenome. Já não havia mais porque brigar pela liberdade. A única fonte de libertação estava no tão comentado êxodo. A saída tinha hora, data e assento marcados. Peguei minhas malas, tomei o avião, e enquanto ele levantava voo, consegui ver ainda um último monumento de concreto ruindo junto com a cidade inteira, sendo engolido pelo mar, afundando junto com aqueles que, domados e em silêncio, resolveram ficar e ver a completa destruição da ilha da qual nunca mais se ouviu falar.

4 comentários:

  1. Excelente, Mary!
    Pensar teu texto como não muito distante de uma realidade conhecida nossa é inevitável. O caminho que vem sendo trilhado há décadas nos leva até a crer que não seria surpresa caso a ilha fosse tragada por ela mesma. Vou mais longe no "devaneio" e arrisco-me a questionar: não será a ilha - com as pessoas que nela habitam - a serpente dela própria?
    Reflexão necessária.
    Abraço!

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  2. Muito obrigada, Talita!
    Seu devaneio me surpreendeu, pois pensando bem ele acaba se tornando uma hipótese muito válida. Atualmente é nisso que tenho acreditado - a menos que algo seja feito a tempo. Enfim, de alguma forma, não sei por qual motivo, ainda tenho esperanças! :)
    Até mais, obrigada pela visita. Abraços!

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  3. Um belo texto, tocante. Nos deparamos em frente às nossas ambições oprimidas pelo dia-a-dia e pela história da cidade.
    Esse desejo de fugir daqui e procurar o melhor - o êxodo, de cara me lembrou a Canção do (D)Exílio, de Nauro Machado:

    "Não permita Deus que eu morra
    nesta terra em que nasci:
    que a distância me socorra
    e com turbinas me corra
    de quem minha nunca cri."

    Um conto emocionante e profético, parabéns!

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  4. Muito obrigada pelo comentário e pela visita! :)
    Até mais.

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