Como me apaixonei por uma mulher...

... Ou melhor, pelos seus trabalhos.
_
Tudo começou por volta do ano de 2003.
_
Nos encontrávamos à tarde na biblioteca da minha antiga escola, onde poucos davam aos livros a sua verdadeira importância. Foi nessa biblioteca que conheci seu modo de pensar, de transmitir opiniões, de contar histórias.


Foi lá que, durante horas, ouvi o que ela tinha a me dizer. E esse foi só o começo da minha grande paixão pelas narrativas de Lygia Fagundes Telles, escritora paulista que conquistou minhas preferências literárias e hoje me faz buscar cada vez mais os títulos da sua obra.
_
Lembro bem do quanto me fez viajar o livro As Meninas, de 1973. Lembro ser um dos poucos livros em que estive tão envolvida com a história de três garotas completamente diferentes, vivendo na Ditadura Militar e envoltas em um enredo de análise psicológica promovido por Lygia - característica que a escritora adota com frequência. Foi o que eu percebi de cara no primeiro livro seu que li, o Ciranda de Pedra, de 1954 (utilizado como base para duas novelas homônimas na TV Globo). Um enredo que, querendo ou não, nos puxa para o interior de uma história cheia de segredos e da tão comum percepção aguçada que Lygia desenvolve em suas personagens.
_
Porém, quem igualmente deseja se apaixonar pelo trabalho dessa talentosa escritora, precisa conhecer também seus contos, um deles chamado "A estrutura da bolha de sabão", um dos meus preferidos. E pra não deixar vocês na curiosidade, segue aqui um trechinho:

---


A estrutura da bolha de sabão

Lygia Fagundes Telles


"Era o que ele estudava. 'A estrutura, quer dizer, a estrutura' - ele repetia e abria a mão branquíssima ao esboçar o gesto redondo. Eu ficava olhando seu gesto impreciso porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco. "A estrutura da bolha de sabão, compreende?" Não o compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca, a espuma descendo pelo queixo. Molhando o peito. Então eu jogava longe canudo e caneca. Para recomeçar no dia seguinte, sim, as bolhas de sabão. Mas e a estrutura? "A estrutura" - ele insistia. E seu gesto delgado de envolvimento e fuga parecia tocar mas guardava distância, cuidado, cuidadinho, ô! a paciência. A paixão.

No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da água mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da pele, ô! amor de ritual sem sangue. Sem grito. Amor de transparências e membranas, condenado à ruptura.


Ainda fechei a janela para retê-la, mas com sua superfície que refletia tudo ela avançou cega contra o vidro. Milhares de olhos e não enxergava.



Deixou um círculo de espuma. Foi simplesmente isso, pensei quando ele tomou a mulher pelo braço e perguntou: "Vocês já se conheciam?" Sabia muito bem que nunca tínhamos nos visto mas gostava dessas frases acolchoando situações, pessoas. Estávamos num bar e seus olhos de egípcia se retraíam apertados. A fumaça, pensei. Aumentavam e diminuíam até que se reduziram a dois riscos de lápis-lazúli e assim ficaram. A boca polpuda também se apertou, mesquinha. Tem boca à-toa, pensei. Artificiosamente sensual, à-toa. Mas como é que um homem como ele, um físico que estudava a estrutura das bolhas, podia amar uma mulher assim? Mistérios, eu disse e ele sorriu, nos divertíamos em dizer fragmentos de idéias, peças soltas de um jogo que jogávamos meio ao acaso, sem encaixe. (...)"

---

Gostaram? Quem quiser ler o conto na íntegra, basta clicar aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário