O pássaro e a lápide

Conto produzido para o Curso de Produção Literária, realizado no SESC de 28 de maio a 12 de junho de 2012.
-
Boa leitura!


----

O pássaro e a lápide
Mariany Carvalho

Fonte

Pela primeira vez após anos da sua partida, abria o álbum de fotos e buscava nostalgicamente pela fotografia que o neto pedira. O garoto, que acabara de atingir uma fase da vida criticamente ávida por saciar curiosidades, agora pretendia conhecer o passado que o avô detinha, e do qual pouco falava.

O álbum em questão – guardado no fundo da gaveta – era um livro grosso e levemente desbotado, mas que, a julgar pela aparência que as antigas publicações carregam, parecia trazer grandes histórias. Com o livro aberto, as mãos ora posicionando os óculos na face cansada, ora alisando os ralos cabelos brancos, o avô pouco a pouco se pôs a restituir memórias.

A cidade era pequena. Uma típica vila de interior, com casas miúdas e sem luxo, de gente simples e semblante paciente. Falavam mais alto os pássaros que, do alto da copa das árvores ou em pleno voo, desafiavam uns aos outros a fim de eleger o melhor canto. As árvores, um espetáculo à parte, eram frondosas e cheias de vida, abraçando a cidade e pintando seu cenário dos mais diversos tons de verde.

Porém uma árvore, em especial, era a mais bela e imponente de toda a flora da cidade. Já centenária, seu tronco espesso e alto e sua folhagem vasta eram a ponte entre o vilarejo e o céu. Ficava no centro da cidade e fazia parte da vista da janela daquele povo pacato, que a cumprimentava sempre ao primeiro abrir de portas, todas as manhãs. Diziam serem suas raízes os pilares que sustentavam a cidade, e que não seria de bom grado ceifar sua vida.

O avô, conforme via cada pequeno pedaço de suas experiências, rendia-se a uma comedida comoção.

Ele ainda era um menino quando, ao cair de um galho e chegar em casa com os joelhos em brasa, levou a primeira das muitas broncas de sua infância. Mais tarde, já moço, escrevera nessa mesma árvore as suas declarações secretas de amor. Mas o tempo passou, e ele precisou deixar a calmaria do vilarejo para ir em busca de uma vida melhor.

Depois do seu êxodo, o que ele soube foram somente rumores.

A cidade crescia cada vez mais. Os primeiros empreendimentos começavam a surgir e muita gente teve que trocar sua tranquilidade pelo barulho do desenvolvimento emergente.

Assistindo a toda aquela movimentação, a árvore permanecia majestosa no seu posto de guardiã. Certo dia, porém, uma inquietação iniciou-se logo cedo no centro da cidade. Ouviam-se depoimentos indignados, histórias de vida e um desejo muito forte de que todos, unidos, detivessem o pior.

Derrubariam a grande árvore.

Revoltados diante de máquinas, operários e ferramentas, via-se uma parede de idosos, adultos e crianças se formando e unindo suas poucas forças contra aquele progresso que ameaçava roubar por completo os vestígios de vida e simplicidade que ainda restavam naquela cidade antes esquecida.

Houve resistência, mas não houve compaixão.

Entre galhos caídos e raízes arrancadas, o céu se fechava perante o cenário de tristeza e destruição.

Nunca mais se ouviu falar daquela cidade.

E o álbum, agora fechado e lacrado sob lágrimas, voltava silencioso para a gaveta do passado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário