Espelho de palavras

Ilustração: Rems 182

Ler é um processo que vai muito além da mera decodificação de palavras. Envolve conhecimentos específicos, gerais, íntimos, subjetivos, e outro punhado de sensações e emoções desencadeadas. Digo isso porque espero que tenha acontecido com vocês - ou que pelo menos aconteça - o mesmo que aconteceu comigo ao ler o conto "A pitonisa e as quatro estações", que faz parte do livro "Matar um homem", de Ricardo Ramos.

Mesmo ainda não tendo terminado de ler o livro do Ricardo, posso lhes dizer que os quase 60% que li são de tirar o fôlego. Mas o conto de que falo hoje me chamou atenção por uma coisa: foi a primeira vez que vi um espelho feito de palavras.

A sensação não é das mais comuns, mas não por isso deixa de ser interessante. São muitas frases soltas ou trechos de livros que podem nos refletir, mas nem sempre encontramos um conto inteiro que nos faça isso. Melhor ainda quando é um livro todo. Esse prazer ainda não tive, mas pretendo ter. :)

A pitonisa e as quatro estações traz como personagem principal um homem, e tem como foco seus pensamentos a respeito da vida e a partir de interações com uma mulher, provavelmente namorada ou esposa. Basta uma frase pra desatar os nós do seu monólogo silencioso.

"Quem saberá dizer os seus instantes de opção? É provável que o difícil seja isso, isolar um certo momento, uma palavra, um gesto, como se tudo pudesse em dado fato ser resumido. Não existem resumos de viver."

Ilustração: Rems 182

O conto, dividido em quatro partes, traz cada uma como representações das estações do ano. Nada é explícito; a trama toda é um conjunto de códigos somente decifráveis através da nossa sensibilidade e capacidade de interpretação. Não algo cansativo, mas sim complexo, denso, subjetivo. Gostei bastante e não estou conseguindo esconder...:P A verdade é que diversos trechos e até a própria estrutura do conto me fizeram elegê-lo como meu espelho quase eterno - sim, pois eu não pretendo fazer parte de uma forma fixa o resto da vida, precisamos sempre mudar alguns conceitos, faz parte de nossa evolução pessoal. Todas as inquietações do personagem, seus questionamentos e constatações ou já faziam parte de mim, ou tomei pra mim. Afetividade mútua.

"Como saber o que nós queremos? Basta saber o que somos, já é uma carga suficiente."
Ser despido por um conto não é fácil. Isto porque toda sua leitura nos obrigou voluntariamente a viajar por nós mesmos, descobrindo coisas que antes não nos dávamos conta. E isto não é ruim. Sempre é bom se deparar consigo mesmo, embora que em outra forma. Foi o que me aconteceu, e eu recomendo a experiência.
Ah, e quem puder, não deixe de ler não somente o conto, mas o livro inteiro!

2 comentários:

  1. Acho que já me identifiquei com algo ou senão, ele próprio me identificou. A sensação de algo te descrever enquanto o lê, é interessante. Ou até surpreendente e impolgante. Dá vontade de dividir com todo mundo ... rs

    Certamente se eu fosse ler esse livro, não buscaria uma identidade minha. Buscaria involuntariamente te identificar nele.

    As pessoas são marcantes pelo demonstrar dos gostos e gestos e personalidade, e a partir disso marcam as pessoas que são as expectadoras desse demonstrar todo, nunca é demais dizer, são marcas permanentes.

    Não é clichê dizer ...seja você mesmo!
    Antes que circulem por aí xerox borradas, mais claras que as originais, distorcidas.

    Parabéns por sê-la!

    Té. (desculpe alguma redundância)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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