Um gole de lembranças

Onde eu estava em 76? Nem lembro. O cabelo pelos ombros, nas mãos uma faixa, ou um violão, às vezes uma mulher. Era um homem de alma livre. Alma que outrora era palpável, colada na pele, transparente; quem de mim se aproximasse sentiria seu cheiro e toque. Hoje ela não me atende. De longe deve achar graça de ver esse corpo como uma casca, oco.

Falei de violão, mas na minha cabeça vem o som de uma flauta. Fantasmagórica. E um sujeito qualquer falando da noite anterior. A conversa ia e voltava feito as ondas da praia onde estávamos. Mas isso já não é pra agora; a última vez que fui à praia faz um ano. Talvez a areia me agrida, nem lembro mais. Eu que quase virei peixe em 76. Foi em 76? Nem estou tão velho assim e nem lembro.

Garçom, mais uma dose.

Beber toda noite, protestar sempre que possível. Uma noite conheci Luiza, que se desenhava no gelo do copo. Ou fui eu que imaginei isso. Luiza, de olhos escuros, me mostrou o que era a eternidade escondida nas suas pupilas. Ou entre suas pernas, tanto faz.

Meu cabelo já chegava na cintura e meu violão tocava quase sozinho. De novo a flauta. Luiza trocou as cordas do violão pelo sopro babado daquela flauta dos infernos.

Agora eu falo sem entender mais nada. Eu penso e lembro sem saber que na minha cabeça tinham todas essas coisas. A eternidade da íris negra de Luiza morreu pouco tempo atrás.

Olhando assim no espelho, meu cabelo está mais curto, minha alma me fita do outro lado do bar. Eu continuo oco. Minhas lembranças sumiram do cérebro e só o que resta sou eu, as paredes, o balcão e essas roupas velhas. Assim eu continuo. Minha dignidade deve estar no fundo do copo.

3 comentários:

  1. - "Beber toda noite, protestar sempre que possível."
    - "... minha alma me fita do outro lado do bar. Eu continuo oco. Minhas lembranças sumiram do cérebro e só o que resta sou eu, as paredes, o balcão e essas roupas velhas. Assim eu continuo. Minha dignidade deve estar no fundo do copo."

    As vezes tu tens uns "surtos" (:p) muito bons, mas muito bons mesmo. Uma vez tu disse que não é de escrever contos, mas eu digo que cunho pra isso tu tens, só falta exercitar mais.

    Como ia dizendo, eu me identifico com algumas das coisas que tu escreves. Nesse ultimo conto, as partes destacadas já são mais do que suficiente. Não que eu beba demais (aqui e ali, sempre que tenho algo no bolso, ou seja, uma vez por semana e olhe lá); mas é onde eu realmente me sinto a vontade, onde geralmente me motivo a escrever mais, onde posso sentar e observar o mudo ao derredor... Ver como ele é divertido e dedutivo.

    Paz em Cristo, moça. Continue escrevendo porque eu vou continuar lendo ^^.
    Té!

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  2. Muito bom. A personagem é deploravelmente carismática. Meus parabéns (:

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  3. Tá de parabéns ...
    Por mais que ele descreva,
    tudo parece um longo pensamento.
    Um diário pessoal secreto.

    Prazer em invadir o pensamento alheio, rs.
    Inté

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